6.7.09

Mariana

De tudo o que sentia, o que mais chamava atenção era o quão diferente era de seus pais.
A mãe obsessiva. Quando limpava a casa, fazia de modo que a Virgem Maria pudesse descer dos céus e usar a latrina. No fundo, todo mundo é assim. Não teria problema se isso acontecesse uma vez por semana, mas isso acontecia todos os dias. Francamente, era demais.
Seu pai era da rigidez militar e tinha como lema “ordem e método”. Era ritualístico: chegava em casa do trabalho, se servia de uma dose de uísque e sentava para assistir o jornal. Como não fosse suficiente, era racista. Nos dias em que excedia sua uma dose, bradava aos quatro ventos:
- Esses alemães foram, são e sempre serão idiotas! Na tentativa de exterminar os judeus, fizeram um puta serviço de preto! - Daí pra baixo.
De tanta vergonha, a mãe munia-se de um pano e partia a limpar a cozinha. Resmungando como o Zé Buscapé de saias.
Do alto de seus dezenove anos e já acostumada com os teatros familiares, simplesmente flutuava pela vida. Amava o sol e adorava a chuva. Criava amores-perfeitos no parapeito da janela do quarto e conversava com eles a cada rega.
Escrevia poesias. Não era Drummond nem Pessoa, mas gostava do que escrevia. Adorava escrever ao som de Full On. Ela mesma percebia a contradição e o abismo entre as duas coisas, mas a final, ela era assim. E dizia:
- É uma coisa Ying-Yang, sabe? A dualidade do ser humano, uma coisa cósmica e tal...
Vivia na porta do Estação. Adorava ver as expressões das pessoas quando saiam de um filme e tentava adivinhar se o filme era bom, se ela gostaria, se recomendaria ao namorado.
Ah! Ela tinha um namorado. Ela era artista plástico. Morava num apartamento que ele comprara e transformara num loft que não tinha móveis. Mariana passava as tardes lá e adorava ver seu namorado pintar, esculpir. Gostava de ficar no meio daquela confusão de tintas, telas, argila e metais. Ela se sentia parte do processo criativo dele. Gostava de acreditar que ela era a musa, a grande inspiração divina, a epifania. Curiosa e inesperadamente como tudo na vida dela, o namoro acabou. Caminhando pelo Jardim Botânico, ela se deparou com um sujeito que estava sentado num bar. Ela escutava bossa-nova no mp3, mas ele não olhou de volta. A luz de seus olhos só se encontrariam mais tarde. Ele escrevia. Rabiscava mais que escrevia. As palavras vinham como que de outro mundo e ela se encantou. Atravessou a rua e sentou na mesa ao lado dele. Ele, meio concentrado, meio encantado, fingiu não ter visto. Bebericava o chopp e beliscava o cigarro meio fumado pelo vento. E rabiscava num pedaço de papel coisas sobre o espaço e o tempo. O perder, o encontrar, o querer.
Sem saber por que, ele levantou os olhos do papel e encontrou os olhos de Mariana. Ela sorria como ele nunca tinha visto. “Across the Universe”, ele pensou.
- O que você tá escrevendo?
- Não sei. Mas tenho certeza que é pra você!
Depois de um tempo, Mariana na casa de seus pais. Chamou os dois na sala e disse com seu jeitinho calmo:
- Vim aqui pegar minhas coisas. Vou me mudar. Não quero que vocês fiquem chateados comigo. Na verdade, acho que nunca pertenci, nunca fiz parte. – Subiu as escadas, fez sua mala, pegou seus amores-perfeitos e se foi.
No dia seguinte, a mãe de Mariana fez o mesmo. Sumiu no mundo com uma mala contendo uma muda de roupas, uma escova de dentes e uma foto de sua filha. Quando o primeiro inverno depois de todos esses acontecimentos chegou, o pai de Mariana, tão desbaratinado, pegou o revólver na gaveta achando que era a bombinha pra asma. Da mãe, nunca mais se ouviu falar. Dizem por aí que comprou uma moto e viaja mundo a fora com outros motoqueiros. Outros dizem que casou com uma defensora dos direitos das mulheres.
Mariana e o escritor moram juntos e têm um filho. Os dois compraram uma casa e a cercaram de amores-perfeitos. Viajam uma vez por ano pra Europa, bebem vinho, escutam música, escrevem, fazem amor...

Arquivo do blog

Free counter and web stats