30.1.04

Aquela velha idade nova.

Eram duas, as moças. Bem, "moças" é bondade, já que deviam equilibrar-se entre seus sessenta e setenta anos. Não importa. Estavam lado a lado, em um daqueles bancos de cor cinza do metrô de São Paulo. Linha Azul, estação Ana Rosa, sentido Tucuruvi, destino Sé. Quem conhece um pouco esse caos de linhas e baldeações e metamorfoses já se situou. Quem não, bem, também não tem muito o que exlicar. É mais ou menos como estar na Linha verde do metrô do Rio, na estação de Triagem, sentido Estácio, destino São Cristóvão. Ok. Mas divago.

Eram duas, as moças. Ambas enrugadas, mas as semelhanças paravam por aí. A da esquerda, tadinha, um pouco curvada, vestido de pano preto e branco, cabelo preso em coque, sandálias rasteiras de couro, nenhum acessório a não ser por uma bolsa igualmente de pano preto e olhos azuis distantes em algum ano de antes. Ou de depois. Ou de nunca mais.

Eram duas, as moças. A da direita, enrugada sim, mas o sintoma velhice só se podia perceber por este fato. Vestia jeans bordado, camisa de seda com babados, jaqueta jeans com lantejoulas, sapato bico fino e carregava em si anéis e brincos ostensivos. Tinha uma maquiagem forte, cabelos avermelhados e um esforço gigantesco em se parecer mais nova. Inquieta, não sossegava um minutos, abria a bolsa, tirava um espelhinho, ajeitava o cabelo, puxava um lenço, secava o rosto - céus, como fazia calor - , olhava o telefone, virava-se para olhar a rua, cruzava as pernas, descruzava e quem estava em volta começou a se incomodar.

Menos eu. Eram duas, as moças. E eu ali, de pé - tinha cedido o meu lugar no banco cinza para a primeira, da esquerda - frente às duas, tecendo cenas em minha mente: de onde estavam vindo? Por que eram tão diferentes? Que passado guardavam ali, estampado em cada ruga e em cada gesto - exagerado em uma e nulo em outra - e para onde estavam seguindo?

Fiquei a imaginar. Eram duas as moças. Algumas décadas atrás, a da esquerda era uma recatada moça de família. Casou-se sem amor, teve filhos por ser o percurso normal da mulher, envelheceu porque assim o tinha de ser. A outra, da direita, essa não: frequentou salões e cabarés, deitou-se com os homens que quis - e com os que não quis, por dinheiro. Viveu. Quebrou a cara algumas vezes, mas paciência. Ou poderia ser o contrário. Ou não. Sou só eu imaginando coisas.

Eu ali, frente à elas. Uma quieta, a outra irrequieta ainda. Elas me olham. E eu me imagino equilibrando-me entre meus sessenta e setenta anos, se vou ser como uma ou outra. E elas ficam ali, a lembrar de seus vinte e poucos.

E desço sem perguntar qual das duas é mais feliz.

25.1.04

Análise

Tão abstrata é a idéia do teu ser
Que me vem de olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a idéia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, nesse ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

(Fernando Pessoa)

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