12.3.04

Pedaço de Mim

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus

(Chico Buarque)

10.3.04

Velho

- Abre! É pra você!
- Não imaginei que fosse pra sua mãe!
O velho, sentado em sua poltrona, admirava estático o cuidadoso embrulho feito pela moça da livraria. As mãos trêmulas pelos anos de tabagismo e intimidade com a garrafa começaram a desfazer o laço.
- Ah! Você é desses? – Perguntei me divertindo.
- Desses?
- É! Desses que desfazem o laço e vão abrindo o embrulho cheio de cuidados! Se você soubesse a agonia que isso causa em quem te dá o presente...
- Já fui moço e tive pressa! As coisas hoje me parecem mais divertidas quando feitas vagarosamente.
Velho. Era assim que eu o chamava. Coisa nossa. Na verdade, ele já era velho de espírito antes de sê-lo de fato. Lembro de quando perguntei sua idade e ele, rabugento como sempre, respondeu:
- Dez anos a mais que meu corpo!
Comecei a acreditar que ele jamais abriria o maldito embrulho e sabia que ele o abria devagar só pra me irritar. Passei a ter certeza disso quando reparei que ele colocara o livro a frente do rosto e me espiava por cima do mesmo fazendo força para não rir da minha angústia. Depois de mais alguns agoniantes instantes, o papel de embrulho enfeitado com vários Garfields caiu ao chão e um silêncio denso pairou sobre a sala. Pude ver que os grandes olhos verdes do Velho estavam marejados por trás das grossas lentes. Lentamente ele levantou a cabeça e me fuzilou com o olhar:
- Imbecil! Isso certamente custou uma pequena fortuna! Fortuna essa que deveria ter sido empregada num belo e romântico jantar com sua namorada!
- Também te amo, Velho! Que bom que você gostou!
O livro em questão era um exemplar da primeira edição de O Ser e o Nada de Jean Paul Sartre, escritor preferido do Velho e que de fato tinha me custado muitos meses de horas extras. Valeu à pena. Velho era escritor e já tinha algumas centenas de trabalhos publicados. Obras existencialistas e sobre realismo dialético. Havia se formado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e por volta de 2007, já depois dos 30 anos de idade. Aos 35, fora convidado pelo governo francês a fazer um doutorado em Sorbonne, o que o obrigou a abandonar as escolas em que lecionava história e filosofia para o segundo grau. Foi assim que o conheci. Em uma branca sala de aula do Centro Educacional Anísio Teixeira, o ainda jovem professor entra em sala vestindo uma surrada calça jeans, tênis e uma camiseta com uma desbotada gravura de O Grito estampada no peito. Jogou sobre a mesa uma pasta de couro repleta de livros, textos e anotações que carregava a tira-colo. Olhou para a turma de aproximadamente 40 alunos e disparou:
- Bom dia, criaturas acéfalas! Sim! Acéfalas! Com o passar dos anos e com a minha tutela, os senhores se tornarão criaturas capazes de portar alguma coisa parecida com um cérebro dentro dessa cachola vazia que paira sobre seus pescoços! Sem mais delongas, quero que os senhores, por escrito, me entreguem seus nomes, idade, o último livro que leram e o livro que mais gostaram em todas as suas vazias vidas!
Os alunos se entreolhavam apavorados, cochichavam e murmuravam enquanto o Velho abriu a porta da sala, encostou-se ao batente e fumava um cigarro soltando a fumaça para fora da sala.
- Professor? O senhor vai fumar aqui? – perguntou um incauto aluno
- Vou não! Já estou fumando aqui! Algum problema?
- É que eu não suporto cheiro de cigarro...
- Ótimo! Fica sem respirar! Fiquem avisados, senhores: aqui dentro desta sala de aula não existe democracia! Exerçam a democracia em seus lares, no futebol de rua ou em qualquer outro lugar. Aqui dentro é uma ditadura comandada com mão de aço por este que vos fala!
Confesso que esse primeiro encontro foi um pouco traumatizante, mas no decorrer daquele ano, Velho foi mostrando quem ele realmente era: um pai pra muitos de nós e carrasco para outros tantos.
Certo dia, mais da metade da turma tinha matado aula para beber cerveja numa birosca perto do colégio. Velho deu sua aula para a metade presente (eu estava na metade da cervejada) e depois disso foi até a birosca. Entrou fingindo que não tinha nos visto, pediu duas cervejas, pegou um copo e sentou-se entre nós. Do meu lado, para ser preciso. Olhou um por um na roda, encheu seu copo passando as garrafas para que nos servíssemos, ergueu seu copo, brindamos e todo o conteúdo do copo foi sorvido em poucos segundos.
Fazia um calor rubro naquela tarde de julho. Velho conversava conosco e citava poetas, filósofos, falamos sobre música, cinema, literatura, artes. Seu discurso era sempre inflamado e apaixonado o que nos fazia prestar atenção naquele jovem velho que dizia odiar os modernistas e, principalmente, os pós-modernistas. Dizia que seu gosto musical começou em 1920 e parou no comecinho da década de 80 fazendo pouco caso e criticando todos os nossos ídolos. Numa análise mais profunda, acho até que ele se divertia com isso! No fim da tarde nos disse:
- Essa época que vocês estão vivendo é muito especial. Cultivem suas amizades, leiam MUITO e de tudo que passar por essas mãos, namorem e bebam com responsabilidade, tratem bem o outro, cuidem do nosso meio ambiente, sejam engajados em alguma causa que vocês acreditem piamente, tratem as mulheres com muito carinho e respeito. É nessa época da vida de vocês que seus valores, sua moral e sua ética estão se formando. Não desperdicem isso, não se tornem pessoas vazias e lembrem-se: a felicidade está na busca pelo seu sonho e não na realização do mesmo. - Velho pagou nossa conta e se foi cantarolando Ventura Highway. Fiquei observando o passo forte e decidido daquele homem que se tornaria meu ideal de vida.
Isso foi há muitos anos e nunca perdemos contato. Semana passada fui visitá-lo no hospital. Perecia que a velhice física o havia alcançado. Continuava rabugento como sempre mas de uma forma mais branda. Conversamos amenidades por cerca de uma hora até que Velho ficou cansado e me pediu para que eu fosse para casa.
Morrera ao longo daquela noite, foi o que a mocinha do hospital me contou pelo telefone. Ela me contou também que ele tinha deixado uma carta para mim. Corri até o hospital e ao entrar no seu quarto, vi a carta sobre a cama. Abri e li:
Animal,
Não quis te contar mas sabia que não passaria da noite então, quando você se foi, escrevi essas linhas tortas não sabendo muito bem o por quê.
Quero que você seja o guardião de tudo que foi meu: meus livros, discos e escritos. Sei que estarão bem guardados com você.
Enquanto escrevo, lembrei-me de uma vez quando você me disse que queria ser igual a mim e que respondi em alto e bom som: ‘Impossível, Animal! Impossível!’
Saiba que continua achando impossível existir alguém igual a mim mas, rest assure que tu te tornaste uma pessoa melhor do que eu tenha sido em qualquer momento da minha existência.

Do pai que nunca fui para o filho que nunca tive!

Um forte abraço do
Velho
”.

O que dizer dela?

E o que dizer dela, nua em pêlo,
pêlos ouriçados pela proximidade dele?
O que dizer dela, que ofega
e desfalece de olho aberto,
boca receptiva e
nua em pêlo?
O que dizer dele,
que com todos os defeitos-imperfeições dela,
é quem a recolhe nos braços,
cacos de dia,
e os remonta, um a um,
até ela ser outra,
nua em pêlo,
olho fechado, sono profundo.
O que dizer disso tudo,
que acontece a esmo,
dia sim outro também;
o que dizer dela?

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