12.11.03

Sentou-se à mesa munido de lápis e papel, acendeu um cigarro, deu uma tragada e apoiou-o no cinzeiro que tinha furtado de um restaurante. Soltou a fumaça vagarosamente tentando achar formas distintas e sorriu com co canto da boca.
A sala toda estava escura a não ser pelo lustre que ficava exatamente sobre a mesa. Dentro do lustre uma lâmpada concentrava seu facho amarelado sobre o papel e o cinzeiro. Além disso, a casa escura e silenciosa como uma igreja. Percebendo a movimentação seus gatos subiram na mesa para averiguar o que acontecia, ganharam carinhos, festinhas e desceram para continuar dormindo no sofá.
Olhava além do único ponto luminoso da casa e percebeu como a fumaça do cigarro criava formas fantasmagóricas. Tinha a impressão de que a escuridão parecia querer engolfá-lo e torná-lo parte dela.
Recostou na cadeira, deu uma longa tragada no cigarro apagando-o logo em seguida. Fechou os olhos e permaneceu assim por algum tempo. Tinha a nítida sensação de que o tempo havia parado. Sentiu uma moleza e cochilou. Ao acordar, percebeu que estava bem no meio de um campo de alfazemas. O dia ia nascendo e o sol, preguiçosamente começava a despontar no horizonte. Olhou para baixo e viu a leve bruma que subia do chão trazendo consigo, o cheiro inebriante das plantas. Passou os olhos ao seu redor e não havia nada mais do que muitos quilômetros de plantações de flores divididas em enormes retângulos não muito regulares delimitados por uma pequena vala onde a água se concentrava.
Havia papoulas vermelhas, rosas de todas as cores, margaridas, violetas, amores-perfeitos. Sentiu algo frio atingir seu peito e olhando para si, percebeu que estava nu e que o sistema de irrigação tinha sido ligado. Sentiu o cheiro de terra molhada invadir suas narinas, fechou os olhos, fez uma volta completa sobre os pés tentando distinguir todos os aromas presentes e sentiu que em algum lugar distante, estavam queimando lenha. Abriu os olhos e viu fumaça ao longe.
Começou a caminhar na direção da fumaça mas não consegui conter a curiosidade em saber que lugar era aquele. Começou a correr e lembrou-se de que estava nu.
- Como é que eu apareço assim na casa dos outros? – Pensou parando de correr.
Continuou caminhando mas a largas passadas e decidiu que contaria uma história qualquer aos seus possíveis anfitriões.
Chegou até os rústicos e irregulares degraus que levavam até a varanda de tábuas corridas que, devido às intempéries, estavam empenadas e soltas em alguns pontos. Bateu com os nós dos dedos à pesada porta de madeira de lei e correu para trás de um barril a fim de se esconder. Esperou alguns segundos mas não houve resposta. Dirigiu-se à porta mais uma vez e bateu mais forte correndo em seguida para seu barril-esconderijo. Nada. Voltou à porta e girou a maçaneta e a porta abriu forçando os gonzos secos e rangendo alto.
Ao espiar dentro da casa reparou que se sentia estranhamente familiarizado com os móveis e com o ambiente. Não havia televisão na sala. Somente dois sofás de três lugares cada formavam um ângulo reto entre si e que emolduravam uma mesa de centro com tampo de vidro. Sobre a mesa, um cinzeiro com algumas guimbas de cigarros de palha. ouviu um ruído de uma panela de barro sendo postas sobre um fogão a lenha. Em pouco tempo o cheiro de café invadiu a casa. Agora ouvia passos se dirigindo a espaçosa e pouco mobiliada sala.
Sentiu um frio no estômago mas decidiu que não correria nem se esconderia. Um velho magro porém com a musculatura bem definida pelos anos de trabalho braçal. Um cavanhaque já branco e muito bem aparado emoldurava a boca de lábios grossos. Alguns vasos bem dilatados nos cantos do nariz denunciavam a intimidade com o álcool.
O velho voltou-se para ele e os verdes, expressivos e penetrantes olhos verdes encontraram os seus.
- Finalmente você chegou! – Disse com a voz firme – Estou te esperando desde bem cedo. Por que demorou tanto? – Abriu a boca mas não conseguia proferir as palavras. – Nah... não diga nada. Sei o que você está pensando.
- Quem é você – Balbuciou o jovem.
- Não reparou a semelhança? Eu sou você. Somos a mesma pessoa com alguns anos de intervalo.
- Mas que lugar é esse? Como é que isso aconteceu?
- Tem uma hora na vida de uma pessoa, quando se está feliz e equilibrado, em que uma janela temporal é aberta. Ao olhar por essa janela, pode-se ver o passado ou o futuro. Sua escolha foi o futuro
- Esse é o meu futuro? Mas não é nada do que planejei apesar de não me desagradar em nada!
- Essa foi a escolha que fizemos!
- Foi uma boa escolha?
- Foi a grande escolha que fizemos. Aqui somos felizes com nossas flores, o silêncio, o trabalho. Nossos amigos nos visitam com freqüência e ainda por cima, fazemos nossa própria cerveja!
Sentaram se um em cada sofá, bebiam cerveja e fumavam conversando sobre o passado. Riram bastante e lá pelas tantas, foram dormir. O jovem acordou cedo e não se lembrava de ter dormido tão bem assim. Queria conversar com o velho mas não o encontrou. Resignou-se e foi cuidar do trabalho da fazenda. Herança de seu futuro.

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