27.2.04

Memórias

Fazia frio e chovia uma chuvinha fina naquele dia de inverno. Passava um pouco das oito da manhã; o homem de terno e gravata dentro da TV narrava as notícias em tom dramático, a chaleira apitava sobre o fogão, os gatos se enrodilhavam em suas pernas pedindo comida e no aparelho de som, George Winston tocava “Rain”.
Não pensava em nada. Olhava os pingos de chuva se transformarem em flocos de neve e dançarem até o batente das janelas. Se esforçava, mas não conseguia lembrar de nada. Era quase um zumbi: não comia, mal dormia e tentava lembrar da época em que estava vivo. “Se estar vivo é sentir, então nunca estive vivo. Ao menos, não consigo me lembrar...”.
Acendeu um cigarro e sentou-se junto à janela observando o pequeno montinho de neve sobre o parapeito. O fogo da lareira crepitava e o cheiro de café se espalhava lentamente como um fog inglês. Um frio cinza tomava conta do alto apartamento de onde se via grande parte da cidade espalhando-se em blocos idênticos, que continham casa idênticas, que continham gente identicamente contente com a segurança de uma família e um lar. Não lembrava de nada.
Um dos gatos se empoleirou no alto da estante e deitava como a esfinge enquanto o outro, num canto do sofá, dormia tranqüilamente. O telefone tocou, mas resolveu deixar a máquina atender. Do outro lado, uma voz mais do que familiar:
- Marcio, aqui é sua mãe! Eu sei que você está em casa bebendo café com vodka e fumando um cigarro atrás do outro! – fez uma pausa longa. “Desistiu”. – Meu filho, você não pode se isolar do mundo! O mundo não se resume à sua casa, cara! Há quanto tempo você não escreve? Há quanto tempo você vem dizendo que não consegue criar? Me liga quando quiser...., e logo! Um beijo!
“Não sou só. Sou livre. Me libertei de tudo que me prendia, me angustiava. Disse não! Liberdade é poder dizer não!”. Acendeu outro cigarro, recostou-se no sofá e cochilou. Seus sonhos eram agitados e em preto e branco. Sempre sonhava colorido, mas dessa vez tudo estava em tons de cinza. Imagens obscuras se fundiam às sombras, pessoas se escondiam no escuro, todos fugiam exceto por um par de olhos que o seguia. Olhava por cima dos ombros tentando ver um rosto, mas não via nada mais do que um par de olhos.
Acordou num salto com o toco do cigarro queimando seus dedos. Derrubou o cinzeiro que se espatifou no carpete espalhando cinzas e tocos de cigarro. Correu até seu quarto e ao passar por um espelho, não se reconheceu. O rosto envelhecido, a barba grande, os quilos acumulados na cintura. Não era mais a imagem que tinha de si.
Ao entrar no quarto avistou os jeans jogados sobre a escrivaninha, era o que precisava. Agarrou os jeans, correu na direção da porta de saída agarrando os sapatos e o sobretudo no caminho. Chamou o elevador e vestia suas roupas enquanto esperava. Tinha se lembrado onde vira aqueles olhos. Onde os tinha visto? Quando? Não lembrava.
Lembrou-se de uma cidade que era fronteiriça e era para lá que dirigia o carro. Seu coração batia como se fosse explodir dentro do peito. Não se lembrava de endereço ou telefone. “Louco! Louco! Se diz livre mas entregou-se a todos os charmes da burguesia para que se sentisse livre! Ridículo! Você é ridículo!!”. Sua mente vociferava, tinha um nó no estômago e as pernas formigavam. Ao chegar a duas quadras de onde acreditava ser o que procurava, largou o carro no meio da rua e corria sob a chuva que agora caia torrencialmente. Corria e não sabia se gritava ou se tinha a boca aberta num grito mudo. Sabia que corria. Escutava seus passos no chão, tropeçava em montes de neve fofa, mas continuava a correr.
Chegou a um prédio de três andares, parou em frente e gritou. A mulher sentada junto à janela do último andar ouviu. Não podia acreditar naquilo e correu escadaria abaixo. Abriu o portão e os dois se viram. “Esses são os olhos”. Caminharam lentamente um na direção do outro. Ele tentou secar o rosto com a palma da mão. Queria saber se aquilo era real. Lembrou-se de tudo! Dela. Da vida, das conversas ao telefone. Ela parou. Ele caminho até ela e disse:
- Preciso de você! Preciso viver e acho que só vou viver quando estiver com você!
Ela andou até ele, o abraçou e disse:
- Shhh... Vai ficar tudo bem!

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